Trabalho Científico - Hospital Universitário Alzira Velano.

Uma homenagem póstuma a Zerbini
Dr. Joaquim Domingos Soares

Dr. Zerbini morreu mas sua obra não. Vem-me à memória a ocasião do primeiro transplante cardíaco realizado no Brasil. Era uma noite do dia 25 de maio de 1968 que para sempre ficará marcada na história da medicina brasileira. Todos os personagens deste evento memorável fariam história. No borburinho do pronto socorro adentrou um homem desconhecido vítima de acidente automobilístico que teve uma lesão craniana desfigurativa e impressionante. O documento encontrado em sua camisa o identificava como Sr. Luís Ferreira de Barros, nordestino de aproximadamente 40 anos, vigilante. Ele encontrava-se em coma profundo e arreflexia total, suas chances eram nulas. Logo se constatou morte encefálica. Tal notícia subiu como um foguete até o nono andar do edifício do Hospital das Clínicas, onde ficava o centro cirúrgico. Um homem já maduro, de meia idade, de óculos de lentes grossas e olhar vivo atravessou o corredor do centro cirúrgico, e comandou:- Preparem imediatamente o João. A equipe cirúrgica toda estava preparada. Nesta noite emocionante, mais uma página da história da medicina brasileira iniciava-se, tratava-se da noite do primeiro transplante de coração que se realizaria nesta país. Diga-se de passagem, país onde ainda se morre de desidratação e inanição. Entre as últimas horas do dia 25 de maio até às 8 horas do dia 26, quando no peito de João Boiadeiro, começou a bater descompassadamente o coração do Luíz Vigilante. A operação transplante já havia sido deflagrada há quase 6 meses antes, deixando sempre a equipe de prontidão, mas por casualidade ou destino, somente no domingo de manhã pôde ser finda, perdendo em primazia a um, até então desconhecido, cirurgião sul-africano, Christian Barnard, que realizou no dia 4 de dezembro de 1967, na cidade do Cabo o primeiro transplante de coração na história da humanidade. Não foi este fato um demérito da equipe comandada pelo professor Zerbini, mas um destino, ainda que honroso, concedendo a primazia a quem teve mais sorte, porém, seguramente, eclipsando outros que tinham os méritos. Se alguém pudesse ter a primazia dos transplantes este alguém deveria ser alguém do porte de Zerbini ou de Norman Shumway de Palo Alto, Califórnia, que se preparavam desde 1960, e este último já havia padronizado a técnica da operação em animais de experimentação. A literatura científica internacional elevava Shumway como o pai intelectual dos transplantes e tinha direito à primogenitura científica, só que Shumway foi consciencioso demais. E Christian Barnard era de temperamento mais aventureiro. O problema ético da doação de órgãos estava parcialmente desenvolvido sob o prisma médico, porém não sob o prisma legal. O conceito de morte cerebral, e não a parada ou morte cardíaca balizaria a escolha dos doadores. Por outro lado, a definição e escolha do receptor eram polêmicas. O receptor ideal seria um doente tão terminal que a vantagem da troca fosse inquestionável. Daí, naturalmente, surgiram várias questões, por exemplo, um paciente que tivesse ainda 3 ou 4 meses de vida, teria sua sobrevida aumentada com um coração doado? Assim, Shumway, Zerbini e outros definiram que o receptor ideal fosse um paciente que necessitando de um cirurgia cardíaca, não fosse capaz de sair da bomba extracorpórea, isto é, que tivesse um coração tão lesado que não teria meios de sobreviver sem auxílio da bomba extracorpórea. Todas estas pré-condições ideais e favoráveis não são facilmente encontradas na prática médica, para favorecerem a realização do primeiro transplante. O fato de que o primeiro transplante cardíaco ocorreu na cidade de Cabo, na África do Sul, surpreendeu a todos. E pergunto, que surpresa enorme teríamos hoje, se a cura da AIDS fosse conseguida na Etiópia?

Dr. Zerbini enfrentou muitas dificuldades, nos anos anteriores a 1968, dentro da USP, para realizar os transplantes. Os "cardeais" do departamento consideravam o ato operatório da transplantação um procedimento de "laboratório", isto é, experimental. E experimentação IN ANIMA NOBILI, tinha que respeitar as normas éticas de pesquisa, as quais não eram tão bem compreendidas e unânimes dentro do departamento, tendo em vista as normas éticas e opiniões emitidas não havia clima psicológico para fazer o transplante. O pessoal do departamento achava que era loucura. Com a ajuda de Peter Marocco e Radi Macruz, cardiologistas entusiastas dos transplantes, o Prof. Zerbini pôde levar até o Conselho, a questão, mas como era de se esperar, as reações não foram favoráveis. Por essas e por outras o Brasil por duas vezes, na pessoa do Prof. Zerbini deixou de ser o primeiro país a realizar o primeiro transplante de coração, no transcurso do ano de 1967. Pois, o prof. Zerbini não achava loucura. Estava disposto a fazer, sempre foi aberto a novas descobertas. Mas, evidentemente, ele foi muito cuidadoso na análise e julgamento da questão, porque em última análise toda a responsabilidade recairia nele. E a decisão de não fazer não foi do prof. Zerbini, mas decisão tomada pela cúpula da Universidade. Um dos mais fortes argumentos da oposição era que entre 120 cães transplantados até então não havia sequer um sobrevivente.

Mas Prof. Zerbini não desanimava, era um "Homo faber" aguerrido. Seguia o lema do memorável Dr. Oswaldo Cruz, "...não esmorecer, para não desmerecer". Dizia-se que Zerbini chegou, vindo do interior de São Paulo, como um caipira sem nenhuma vocação para a medicina, extremamente tímido. Porém, três décadas depois, já era o mais famoso cirurgião cardíaco brasileiro, por trás deste homem singelo e humilde encontrava-se um gigante, um homem obsessivo e perfeccionista, um operário da medicina, que galgou o patamar mais elevado da proficiência médica graças unicamente a sua força motriz interior e seu trabalho incessante. Onnia labor vincit. No dizer de seu biógrafo, o jornalista Celso Arnaldo Araújo, Zerbini"... desafiou as estruturas imobilistas da medicina brasileira, ainda presas às mazelas sanitárias do país, para criar uma escola de cirurgia cardíaca - a mais tecnológica de todas as especialidades médicas - "Ele elevou a prática da Cirurgia Cardíaca à nível comparável aos maiores e mais adiantados centros do primeiro mundo.
O pioneirismo de Zerbini se fez sentir de forma ampla na área da cirurgia cardíaca à céu aberto. Desde sua estada em Mineápolis, Minessota, trabalhando e assimilando a técnica de cirurgia extracorpórea com o Prof. Lillehei, este pioneiro da circulação cruzada que utilizava o pai ou mãe de uma criança portadora de malformação cardíaca, para submetê-la a cirurgia cardíaca. E, não sem algum sucesso, o Prof. Lilehey fez alcançar a técnica de circulação cruzada, que posteriormente deu início à própria técnica de circulação extracorpórea. Foi com o mesmo Lilehei que Zerbini aprendeu a técnica de circulação extracorpórea, procedimento tecnológico imprescindível para a evolução e desenvolvimento da cirurgia cardíaca. Em Mineápolis, Dr. Zerbini encontrou outro brasileiro que lá trabalhava no desenvolvimento da circulação extracorpórea, o Dr. André Esteves Lima, cirurgião cardíaco também pioneiro no mundo, que trabalhou com a equipe do prof. Lilehei, Dr. André, hoje, encontra-se radicado em Brasília, onde é cirurgião. Esta interação foi muito produtiva. Prof. Zerbini retornou dos Estados Unidos com sua família, extremamente motivado a desenvolver a tecnologia da circulação corpórea em nosso país. O que depois de muitos esforços conseguiu, abrindo as portas para uma ampla gama de possibilidades, para intervir invasivamente no coração doente.

Outra grande contribuição, logo após Zerbini ter trazido a técnica da extracorpórea, foi o aperfeiçoamento da cirurgia da valva mitral, à céu aberto, com circulação extracorpórea. Os cirurgiões americanos nesta época estavam realizando a cirurgia valvar mitral com a técnica digital, e ficaram surpresos com a técnica utilizada por Zerbini. E até zombavam, pois achavam que se era possível realizar a cirurgia com coração fechado porque haveriam de realizar uma cirurgia mais extrema e de possivelmente maior risco? Mas neste particular, o desenrolar evolutivo da cirurgia nos anos seguintes confirmou a superioridade da técnica de Zerbini, mesmo sendo mais extensa.

Outra grande contribuição de Zerbini à medicina brasileira foi no trabalho em equipe. Primeiramente, cabe mencionar que até nos idosos de 1940, era incomum o trabalhem equipe entre a cirurgia cardíaca e a equipe de clínica médica e cardiologia. A dupla, Prof. Décourt e Prof. Zerbini, fazia uma parceria ideal, o primeiro mais sisudo, porém uma erudição clínica extraordinária, que muito auxiliou no sucesso da cirurgia cardíaca, pois os casos cirúrgicos iam à cirurgia com melhor condição clínica e com diagnósticos mais precisos, tudo favorecendo o desenlace final do procedimento cirúrgico. Esta afinidade remontava já aos anos de faculdade. A formação de recursos humanos na área da cirurgia cardíaca foi outra grande contribuição de Zerbini, vários extraordinários cirurgiões foram seus discípulos, para enumerar alguns citam-se, Dr. Adib Jatene e Dr. Geraldo Verginelli.

O sucesso do Prof. Zerbini dependeu da sua visão na orientação de diversos discípulos que viriam a ser seus aliados e companheiros de luta, quero ressaltar aqui o papel do Dr. Ruy Gomide do Amaral, que embora dedicado à anestesiologia contribuiu muito com o sucesso da equipe Zerbini, o Dr. Ruy aperfeiçoou-se em anestesia voltada à cirurgia cardíaca com formação avançada na Universidade de Harvard, Boston. Este extraordinário médico trouxe para o nosso país conhecimentos e treinamento essenciais para controlar o paciente cirúrgico, mantendo-o bem compensado durante a circulação extracorpórea com coração e pulmão artificiais. O equilíbrio metabológico, ácido-básico e volêmico do paciente, desempenhava papel fundamental no desfecho cirúrgico. Muitas complicações mal-compreendidas no início do desenvolvimento da cirurgia cardíaca, entre nós, foram contornadas devido ao trabalho complementar da equipe cirúrgica com a equipe de anestesiologia, o papel do Dr. Ruy Gomide deve ser relembrado e estar ligado ao sucesso do Prof. Zerbini e seus discípulos.

Dr. Zerbini foi muito querido de todos nós, que o conhecemos e com o qual tivemos oportunidade de conviver. Conheci o professor quando o mesmo foi até Brasília, para dar uma conferência sobre cirurgia cardíaca no Hospital do EMFA. Aquela primeira impressão foi marcante extraordinária. Nele víamos a personificação da humildade aliada à extrema competência. Recordo-me que discutíamos algo sobre pontes miocárdicas e o seu papel na possível gênese de isquemia miocárdica. Ele tinha uma qualidade ímpar, de ouvir e respeitar opiniões, muitas vezes, opostas à sua. Eu trabalhava no cateterismo do hospital e estava naquela ocasião estudando o papel das pontes de miocárdio na anatomia normal e patológica do coração. Ele ouviu-me atentamente, para mim isto foi um estímulo extraordinário para continuar estudando o assunto. Depois de alguns anos nos encontramos novamente quando fui trabalhar no INCOR com o Dr. Siguemituzo Arie, chefe da hemodinâmica. Tive a oportunidade de observar, ouvir e aprender do prof. Zerbini, no seu dia-a-dia, experiência que foi muito enriquecedora para mim, era como provar água limpa junto á fonte.

A atriz Herfiette Morineau, descreveu muito bem como era o Prof. Zerbini. Ela descreveu sua sensação como paciente ao ser operada por Zerbini, numa cirurgia de revascularização miocárdica:- Ele sentava-se em meu quarto em uma cadeira junto ao leito, e eu vendo-o ali, calado, tão simples e tão humilde, tive vontade de chorar. Emocionei-me diante dele como quando estava contemplando a Pietá.

Diante das grandes obras e dos grandes homens, a única coisa que se pode fazer é se comover.
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